SARRO, o brasileiro global

Quando daqui a um século, o povo brasileiro, se voltando sobre seu passado, evocar a sua entrada na história da modernidade, encontrará como acontecimento maior a geração dos filhos de agricultores tornando-se cidadãos das favelas. Aí então, os personagens de SARRO, transformados em heróis, se desprenderão dos muros, deixarão os museus, descerão das bases das estátuas e constituirão o legendário teatro do novo mundo.

A revelação de um dom e de um comprometimento

Adelio Sarro Sobrinho é ele próprio um homem do campo, nascido em 1950 de mãe portuguesa e pai italiano, agricultor de uma fazenda em Andradina, no estado de São Paulo. Muito jovem, revelou-se como carpinteiro, depois cortador de mármore, e pintor de cartazes, sempre sensível aos materiais com reais dons manuais, sendo sua particularidade, esquematizar ao desenhar os temas de suas atividades. Ele traçou através de seus desenhos as características de uma vocação e tornou-se pintor iniciando-se nas técnicas artesanais. Seu encontro com um retratista local revelou-lhe as possibilidades da arte da pintura. Em seguida, ele vivenciou um impacto emocional decisivo quando de uma visita ao museu de Brodowski, descobrindo a pintura de Portinari, que ele sentira como um apelo poderoso, provocando uma verdadeira ruptura e um choque em si. Sarro, desde então, decidiu ser pintor para sempre, a serviço de uma inspiração e de uma imaginação nascidos de seu olhar sobre o mundo que o cercava, a revelação de um dom e de um comprometimento.

Uma transformação radical

Suas primeiras obras conhecidas (1969) - ele tinha 19 anos - mostram a predominância do realismo que o cerca e inspira - a “Natureza Morta” , traduz em uma paleta quase monocromática em cor terra, o azul e o rosa dos peixes que irão afirmar como os elementos essenciais de sua composição. Com “ Música Suave” (1973), quatro anos depois, ele pagina um músico vestido de azul puro com um violoncelo vermelho-violeta.

No mesmo ano “Infância sem Rumo” mostra-nos uma menina segurando sua boneca sentada sobre um estranho espaço recortado geometricamente que transforma a perspectiva em um tabuleiro de damas ocre e cinza, um dos primeiros elementos da deformação que o conduzirá a adotar uma autonomia de visão plástica. Ele introduz pouco a pouco uma transformação radical dos personagens e logo impõe uma modificação do volume dos corpos, dos rostos, mesmo das paisagens, que fazem de cada um dos seus quadros uma imagem imediatamente identificável e que será a base de sua mensagem artística e filosófica. Desde então, Sarro irá desenvolver todas as fases de um estilo de grande poder sugestivo.

Mãos predominantes, pés grandes

Vemos surgir agricultores, fora de sua realidade habitual, tornando-se os personagens de um povo marginalizado, que colocam em cena seus membros como se fossem o verdadeiro capital de sua existência. As mãos e os pés tomam proporções e enormidade, transpondo os corpos e compondo conjuntos além das perspectivas e das propostas comuns.

Cada quadro torna-se um exercício de estilo e uma invenção de ritmos inovadores, constituindo uma harmonia plástica original. Devido às suas mãos predominantes, à seus pés gigantes, à sua expressão melancólica, sentimos um choque emocional que confere à seus modelos uma presença emotiva que nos interpela.

Os personagens - agricultores, trabalhadores, vagabundos, mães, crianças - surpreendidos ao vivo na sua batalha cotidiana por uma sobrevivência miserável, tomam uma amplitude simbólica. Sarro lhes confere o papel de atores. Cada cena irradia uma atmosfera intensa que capta a atenção e cria uma troca.

À serviço do povo

Os imensos afrescos de Cândido Portinari (1903-1962), patéticos em sua expressão massiva, deixaram seu traço na sensibilidade de Sarro. Da mesma forma, o expressionismo barroco de José Clemente Orozco (1883-1949) reuniu os elementos para uma “química plástica” inspirada na arte asteca que o impressionara. Diego Rivera (1886-1957), outro talento do muralismo mexicano, que conheceu Mondigliani e Chirico, transmitiu sua mensagem (sem omitir o texto famoso do afresco de Chapingo: “Este estabelecimento leciona a exploração da terra, não a do homem”). E podemos dizer que o caminho de Sarro segue também o traço de David Alfaro Siqueiros, autor aos 70 anos da célebre “Marcha da Humanidade” na América Latina, surpreendente afresco de 1.350 metros quadrados cuja veemência transforma todas as regras habituais.

A entrada de Sarro nesta surpreendente equipe é hoje um fato histórico e cabe a nós destacar os valores.

Ressaltamos a evidência da qualidade de sua paleta cromática. Todo grande artista tem seus períodos que correspondem a um fluxo de energia de acordo com o apelo que ele vivencia dentro da realidade que o atrai. Como todos os criadores vedetes mexicanos, a grandeza da arte mural e o volume escultural constituíram sua marca, casando cores e formas em um jogo complexo de composições que “fogem às regras”.

É evidente, por outro lado, que os impulsos individuais do artista são motivos para criar as imagens da atualidade tomadas da época. Sarro se faz portador do imaginário de um povo conduzido por uma revolta não violenta, mas cujos sonhos constituem uma ideologia de inserção social. O artista sonha com seus pincéis em nome de todos e, além das imagens, ele propõe todos os valores coloridos do céu. Os títulos de seus quadros são parecidos com os nomes dos topos de uma montanha que devemos descobrir, sublinhando-as - recompondo o poema que as fez nascer - . Cada título aparece como o símbolo de uma etapa à procura de imagens. Sarro nos faz entrar em sua “aventura mental”.

O oceano e o céu

O azul cobalto - o oceano e o céu - de suas telas é como o diapasão e sua música. Todos os azuis, sobre todas as telas e em todas as tonalidades são suficientes para esboçar as silhuetas dos personagens e os traços dos desenhos para fazê-los surgir da zona abissal de acordo com a inspiração que conduz seu pincel.

À partir do azul natural - todos criticos o ressaltam - o rosa e o vermelho aparecem como contrapontos, assim como o verde turquesa ou o violeta - levando a um conflito entre os espaços coloridos, carregados de impulsos, que correspondem às cenas pintadas - a ponto que os psicanalistas e os semiólogos se interessam em sua análise. A cor aparece como o suporte da profunda emoção de Sarro, uma força passional, humana, a serviço de todos para mobilizar os olhares e transmitir sentimento. Ele comunica o ritmo de seus pensamentos, de seus desejos, fazendo apelo à linguagem mais direta, mais evidente, resultando na fusão das sensibilidades.

O desafio da escultura

A intensidade dos desenhos de Sarro conduziu seu lápis, pela expressão do volume que o inspira em toda sua obra como pintor, a realizar para a escultura uma outra dimensão, além da cor como uma espécie de desafio que arranca sua inspiração do mundo plástico imaginário.

Um exemplo típico desta procura e deste sucesso “Resposta da Vida”, um painel esculpido (8,50 m x 2,00 m) em concreto e resina, sobrepondo os três arcos de sua casa em São Bernardo do Campo, que constitui, como filme monocromático, a resposta sobre suas origens - uma surpreendente harmonia entre duas disciplinas de criação, pois todo o restante de sua casa é em cores.

A incrível leveza do conjunto de suas esculturas, o seu movimento, como o charme de seus desenhos femininos, o encantamento dos baixos-relevos, destacam o valor da riqueza da inspiração de Sarro, sempre a procura de uma forma nova e radiante.

A caminho da sociedade global

A mão de Sarro, que se formou com o artesão carpinteiro, o cortador de mármores, afirma-se em toda a sua leveza nas suas esculturas atuais. O cassino de Evian proporcionará talvez a ocasião de admirar uma de suas obras monumentais sobre o tema de uma ronda de personagens, homens e mulheres de diferentes raças, dando seguimento a uma exposição de pinturas que se realizará neste verão. Uma verdadeira consagração do reconhecimento do “agricultor brasileiro” no conceito das nações do futuro, que realizou um afresco em relevo de 60 m2 e de 12 metros de altura - em concreto - diante do centro cultural de São Caetano do Sul e outros afrescos, evocando música e balé, na entrada e dentro do teatro de Osasco, periferia da grande São Paulo.

Através da sinergia das formas e das cores de Sarro, o povo encontra-se glorificado nas suas esperanças. Essa sedução das cores de Sarro - sua exuberância - reside no seu conhecimento das misturas que ele elabora na qualidade de artesão como os antigos mestres - sonha-se com o azul de Giotto -. Através do mundo, suas exposições geram uma demonstração sobre as capacidades, os sucessos, as mensagens que inspiram e guiam um artista contemporâneo, consciente de pertencer à nossa sociedade global em sua evolução, ressaltando a responsabilidade das criaturas face aos comprometimentos do futuro.

Brasileiro de fato, por todas suas raízes, mas cidadão do mundo pela qualidade de sua obra e dos seus efeitos emocionais, Sarro associa as virtudes do passado - seu conhecimento dos materiais e as técnicas - e seu conhecimento do fenômeno moderno no qual as invenções do progresso transformaram nossas mentalidades e nossos costumes; seu amor pela humanidade e o ímpeto voltado aos outros que testemunham sua arte; conjunto que aparece como a síntese das aspirações de um artista exemplar neste início de milênio e que traz o testemunho da sabedoria de um povo.

Paris, 20 de abril de 2001

André Parinaud

Observações sobre o pintor brasileiro Sarro e a cor azul

"Eu creio que o cara enverniza", este veredicto aniquilador foi pronunciado por Wilhelm Leibl sobre Ludwig Thoma.

Se observarmos os presuntos envernizados dos pintores de salão do século XIX, compreende-se a aversão dos artistas pelo verniz e pela pintura em camadas. É uma ironia da história que o dogma da pintura de primeira classe surgiu da admiração pelos vernizes acabados dos Mestres Antigos, cujo resultado, eles não conseguiam alcançar com os novos tubos de tintas.

Renoir expressou isso de maneira mais clara: Uma vez que os antigos conheciam o seu ofício, eles guardaram esse conhecimento e essas tintas transparentes, cujo segredo ambicionamos inutilmente desvendar.

Quando os pintores do século XV ensinavam seus aprendizes a pulverizar as tintas em almofarizes, amassá-las sobre pedra ou decantá-las em água, eles tinham em mente primeiramente a intensidade máxima da luz, pois a pureza absoluta, mesmo com o maior dos cuidados, pertencia ao reino do impossível. À medida em que se perdia o conhecimento físico dos materiais que constituíam os quadros, perdia-se mais do espírito das suas obras.

Goethe reconheceu cedo no alheamento do concreto à média comum: "Mas tudo, meu caríssimo", escreve ele em Julho de 1825 em Zelter, agora é extremo, tudo transcende irresistivelmente tanto no pensamento quanto na ação. Ninguém mais conhece a si mesmo, ninguém entende o elemento, onde ele paira e age, ninguém entende o material no qual está trabalhando. A conversa não pode ser de pura ingenuidade; existe muita ingenuidade por aí. Os jovens são excitados muito cedo e depois arrastados no redemoinho do tempo; riqueza e rapidez são o que o mundo admira e que todos almejam. Estradas de ferro, correios expressos, navios a vapor e todas as facilidades possíveis da comunicação, nas quais acaba o mundo civilizado, devem ser sobrepujadas, reconstruídas e através disso continuar na mediocridade."

O velho azul-marinho (ultramarinho) deve seu nome ao descobrimento da pedra; o Lápis-lazúli veio do além-mar - outro mar - . O novo vem do laboratório e é ultra-azul, assim como todas as cores são agora ultra.

Na observação das obras do pintor brasileiro Sarro vem o pensamento: o cara prepara ele mesmo as suas tintas.

A nunca vista luminosidade das cores, o sedutor azul de Van Eyck, é obtido por Sarro através do jogo da transparência, elevado como princípio básico; ele consegue através de sobreposições e da modelagem diferenciada crescente, uma densidade e uma plasticidade da representação que eram obtidas outrora pelos antigos mestres. A luz penetra uma multiplicidade de "camadas geológicas", até chegar ao fundo da tela de cor marfim, que reforça a luminosidade e o brilho das cores do fundo. A caligrafia é dificilmente reconhecida, o fundo transparente confere à textura um efeito muitas vezes obtuso, quase do tipo pastel, que dificulta sobremaneira as eventuais correções, pois as tonalidades mais fortes, sobretudo as mais escuras, deveriam ser sobrepostas apenas grosseiramente, o que a sua maneira não permite. Sarro não facilita as coisas e freqüentemente parece criar obstáculos para si próprio.

Nascido em 1950, Adélio Sarro Sobrinho nunca imaginou que ele viria a ser um dia, um pintor internacionalmente reconhecido. Filho de um imigrante italiano e de uma mãe portuguesa, desde criança precisou ajudar seus pais na lavoura, numa fazenda em Andradina no Estado de São Paulo.

Mais tarde, trabalhou como carpinteiro, operário de pedreira, numa canteira de mármore e ainda em muitas outras profissões. Nisso ele aproveitava cada minuto do seu escasso tempo livre para desenhar e rabiscar. Nesta época tem origem a sua sensibilidade para diversos materiais.

A visita ao Museu de Brodowski no interior de São Paulo trouxe o ponto de reflexão na vida de Sarro. A profunda impressão causada pelas obras de Portinari fez Sarro amadurecer a decisão de dedicar-se inteiramente à pintura.

Se no começo ele se apoiava fortemente na obra de Picasso, logo encontrou o seu estilo próprio. Seus quadros encontram hoje a mesma admiração que os dos mexicanos Rivera, Orozco, Siqueros e dos brasileiros Portinari e Gruber.

As obras de Sarro foram expostas em várias exposições e feiras artísticas, entre outras na Artexpo em Nova York e Las Vegas e na Europ Art de Genebra, sempre com grande sucesso.

A arte de Sarro é severa e demonstrativamente objetiva. Nisso, ele não é nem um tradicionalista nem um destruidor de tradições.

Como Marc Chagall deixa sempre ressurgir as figuras do "Schteti", também Sarro encontrou o pessoal dos seus quadros nas pessoas da sua vizinhança. Mas diferentemente de Chagall, Sarro ainda vive no meio de sua grande família no bairro de "gente simples" em São Paulo.

Embora ele tenha mudado muitas vezes, ele sempre permaneceu fiel ao meio

Provavelmente por isso as suas figuras - mulheres indígenas, mulatas, agricultoras, mães com seus filhos, vendedoras ambulantes, diaristas e vagabundos - causam um efeito tão tocante. Mãos fortes e grandes pés descalços, são testemunhas da dura batalha da vida que precisam vencer diariamente.

Distanciadas, quase desconfiadas elas contemplam o espectador. Freqüentemente estes olhares parecem perguntar quem é o intruso que capta o acesso. A hora do dia e o fundo ficam propositadamente indefinidos por Sarro. No centro olham apenas as pessoas. Através dessa conseqüente redução, essa escassez calculada, os quadros ganham em atmosfera do simultaneamente sobrereal e irreal e acima de tudo reina uma leve melancolia. Nisso, fica sempre sensível o grande amor de Sarro pelos seus modelos. No seu caso reina não uma oculta vaidade do grande artista, mas, antes, os gestos instigantes e instigados dos anti-heróis que deixam compartilhar a sua alegria pelos sofrimentos e alegrias dos seus amigos nesta difícil existência.

Um crítico de arte pergunta à Sarro: por que sempre este azul? A resposta simples e obvia é: porque eu gosto assim.

Nisso, o tratamento sutil das cores tem uma grande parcela no efeito emocional das obras de Sarro, nas quais cada camada aplicada sobre a outra produz luminosidade e intensidade na superfície do quadro. Através do escurecimento transparente as cores se conservam fiéis, tanto na luz quanto na sombra, e agem animadas mesmo na mais profunda escuridão.

Eu gostaria de apresentar uma citação de Michelangelo de 1547:

"Quando juízo mais forte e dificuldades, obstáculos e incômodos maiores não tiverem uma nobreza maior como conseqüência, então a pintura e a escultura são a mesma coisa. Para que se trate posteriormente, nenhum pintor deve cultivar a escultura menos do que a pintura e o escultor pode ser igualmente ativo na pintura como na escultura. A escultura é para mim uma arte na qual se constrói subtraindo; a arte formada por acréscimo, é parecida com a pintura. Enfim, a escultura e a pintura, tanto uma quanto a outra, originam-se na mesma força do espírito, assim é possível conciliá-las e renunciar a numerosas disputas, com as quais só se gasta mais tempo do que é necessário para a criação de uma escultura."

Assim como muitos outros pintores, Sarro também estimulou o desafio de expandir a sua arte na terceira dimensão, e também aqui a familiaridade com materiais lhe é favorável. Sarro domina o material, ele se organiza segundo a sua vontade.

Mas, se as figuras da sua pintura atuam freqüentemente de modo introvertido, as figuras da sua escultura tendem, pelo contrário, a ser mais extrovertidas.

Apesar do peso do material, elas transmitem a impressão de leveza, de movimento. Figuras femininas formam costas com costas um círculo, os braços erguidos estaticamente para o céu. O motivo das mãos erguidas é repetido por Sarro em algumas outras esculturas.

Encantadores são também os múltiplos relevos do artista, que podem ser admirados nos mais diferentes edifícios do Brasil.

Deve ser salientado aqui o trabalho na casa do artista em São Bernardo do Campo. Lá ele dá forma à vida plena de maneira a alcançar as qualidades breugelianas. Sarro expressa sem dúvida, ao apresentar as suas obras plásticas, o desejo que elas nos agradem.
E elas o fazem!.

Alemanha, 1998

Hans Richter.

Três visões da obra de Adélio Sarro

1. O desenho poético de Sarro

O desenho poético de sarro

O desenho de Sarro possui dois elos: quando é desenho em si mesmo, ele não é mero esboço para a pintura. Ao contrário, tem total autonomia, em relação à pintura, mesmo após a estrutura da linha receber a pele da pintura. Entretanto, o desenho é também o início do pensar lírico ou dramático de qualquer forma que a mente de Sarro venha acolher: o mural, o relevo, a escultura também têm como ponto de partida o desenho.
Os desenhos de Sarro são autônomos e têm vida própria. Mesmo quando trabalhava em fazendas, jamais deixou de desenhar, desenhos que guardou ou deu a amigos. Sarro assinala no papel a poética do que sente ao desenhar.

O desenho é seu Diário de Bordo, nele todo o seu pensamento e criação estão ali alicerçados. Este Diário de Bordo é sua paisagem interior. E nem sempre há elo de ligação entre o que o desenho determina e o seu tema central. O desenho poderá verter-se em pintura ou não, poderá vir a ser um mural ou permanecerá eternamente como simples narrativa do que seu espírito sentiu naquele instante. Emoções como alegria, melancolia, ansiedade, pressentimento e tranqüilidade estão presentes nos seus desenhos, bem como em quase toda a sua obra.

Em Encontros Noturnos – desenho escolhido ao acaso, – há três figuras. Duas estão sentadas em bancos, enquanto a outra rompe a perspectiva na diagonal e deita a cabeça no colo da outra; enquanto a terceira apenas olha. Sarro anotou: desfalecido na noite dorme o cansaço do dia no colo doce do amor, que dá força e alegria para os que amam ou vivem na solidão, beijam na boca da noite, na luz escura da rua, amam nos leitos de pedra mulheres que não são suas. Sonham com os dias que o vento no tempo levou; não lembram mais das horas que o velho relógio marcou, em seus encontros noturnos, sob a luz do luar, contava no universo as estrelas a caminho, perdidas, à deriva, no espaço, sem terem onde morar.

É caso raro o desenho ser manifestação poética de um artista. A linha tem sido obra da razão, do controle, da lógica, da precisão e de refinamento. Ou seja, o desenho é obra do racional, mas não na obra de Adélio Sarro. Nela, o desenho surge através de pensamentos poéticos, como o poema inicial do texto acima: “Desfalecido na noite/ dorme o cansaço do dia/ no colo doce do amor”. Desenhar para Sarro é pura poesia.

2. A Estrutura da cor na pintura de Sarro

O desenho poético de sarro

A cor afeta o coração e os olhos – física e metaforicamente – de um modo mais direto do que qualquer outro elemento da pintura. Na sua forma física elementar, a cor é uma sensação produzida nos bastonetes e cones da retina por ondas de luz de distintos comprimentos. No aspecto místico e poético, a cor pode oscilar entre uma palpitante e envolvente sensação de calor e uma fria e revigorante de luz e espaço. Apesar destes conceitos, é quase impossível definir a cor, pois ela carrega mistérios insondáveis.

O uso da cor na obra de Sarro demonstra o que se diz acima. Sarro trabalha com tênues azuis transparentes e líricos a dialogar com vermelhos palpitantes, solares, numa luta sem trégua, deixando a emoção do observador entre a poesia lírica das cores tépidas do azul e a dramática das cores fortes do vermelho. Entre tais cores, há uma gama sem fim de amarelos e verdes e lilases, que são produzidos a partir do fundo da tela, em camadas diversas e diversificadas, que vão trazendo a emoção do interior do inconsciente do pintor para o inconsciente do fruidor. A sua pintura é real e onírica a um só tempo. Sua técnica é plena de preciosismos, graças às transparências e às texturas rugosas; se nestas ressalta o drama, nas suas transparências surge o clima lírico e poético.

Para obter-se uma cor luminosa é preciso criar-se sombras. É o que faz Sarro com sua poética da cor, ora tensa e dramática, ora lírica e leve, de acordo com a exigência do tema. É preciso perceber que o pintor opera entre o sagrado e o profano. Ora exalta personagens do campo, ora pinta personagens bíblicos.

O desenho poético de sarro

Ao mesmo tempo, tais personagens podem ocupar o espaço de uma tela, ora as personagens podem preencher o espaço de um mural ou vitral. As técnicas do mural foram bem apreendidas pelo pintor brasileiro, já que não ficam a dever aos murais de Portinari ou aos dos mexicanos Orozco, Siqueiros e Rivera quanto à técnica, embora seus temas sejam mais religiosos do que os dos mexicanos, que são mais políticos. Há uma imensidão íntima nas telas de Sarro, que nos conduz ao devaneio. E o devaneio põe o sonhador para fora do mundo, diante de um mundo lírico ou dramático que traz a marca do infinito.

3. O espaço tridimensional na obra de Sarro

Os objetos escultóricos de Sarro possuem variantes: esculturas, relevos e painéis. É importante perceber como o artista passa do risco do desenho para a forma tridimensional escultórica, ao criar um novo espaço de fruição. A composição das figuras se transforma e movimenta um espaço próximo de uma ordem quase simétrica na sua organização. Como não usa cor nesses objetos escultóricos, não há como emocionar pelo colorido, mas Sarro consegue criar uma forma cênica dramática, através dos gestos de suas figuras, com seus rostos singelos e uma dinâmica corporal extraordinária. Na escultura as personagens de Sarro ganham força dramática. As mãos e os pés enormes das figuras criam no espaço gestos radiantes e uma dinâmica que, a pintura não pode oferecer.

Os relevos de cimento nos dão a idéia de que mesmo com material rústico, Sarro realiza obra lírica e dramática, ao mesmo tempo, como se pode constatar em Felicidade Sonhada ou na Resposta da Vida, que fica no frontispício de sua casa.

Os relevos de Sarro mantêm a tradição latino-americana dos grandes muralistas, como Siqueiros, Orozco e Rivera. Sarro, porém, vai mais longe, pois além de ter-se tornado artista global, realiza um dos monumentos religiosos mais plenos de fé na Basílica de N.S. Aparecida – os Passos da Paixão de Cristo. Há solenidade nessas personagens bíblicas, que exibem toda a sua majestade. E a arquitetura rústica do local, com tijolos à vista, traz mais força à tragédia da Via Sacra.

O desenho poético de sarro

A grandiosidade das esculturas de Sarro é produto da simplicidade de seus temas, sempre a valorizar os mais pobres, os excluídos da sociedade e, para tanto, vê-se o amor que o artista dedica às suas personagens, gente que sofre, mas que não desiste da vida, e que procura na fé e na esperança mitigar esse sofrimento.
Podemos dizer que os objetos escultóricos de Sarro seguem a mesma linha de sua pintura, mas que tudo nasce da idéia inicial do desenho, que cria a composição libertária de suas personagens, ora poéticas, ora dramáticas ou ainda trágicas, tal e qual a vida.

Alberto Beuttenmüller (Brasil, 1935). Poeta, crítico de arte e ensaísta.
Autor de livros como Katatruz (poesia), Volpi, Ianelli e Aldir - Três coloristas e Viagem pela Arte Brasileira. Atualmente, é editor do Jornal da ABCA, Associação Brasileira de Críticos de Arte

Sarro: Força de Extensão e Evolução do Esquema

Para os artistas contemporâneos renovarem e promoverem os atuais valores sociais, espiritualidade e visão, eles combinam a essência da cultura tradicional, da crítica social e da criação na linguagem personalizada de uma forma de arte, não poupando esforços para atingir tal objetivo de vida de boa fé. O pintor brasileiro Adelio Sarro é um pintor deste tipo que procura e explora a verdade da arte sobre a base das suas experiências pessoais ao longo de mais de meio século. Baseado nas suas conotações culturais de uma década, construindo um esquema pessoal de pintura figurativa num contexto de narração humanista contemporânea, o artista atinge um elevado patamar de espiritualidade de texto por meio do distanciamento de si próprio do modelo e das regras comuns. No seu processo criativo, Sarro reflete atentamente sobre as relações do ser humano e a sociedade, do ser humano e de si próprio, do ser humano e a natureza através da transformação contínua das imagens de sua criatividade em efeitos visuais e, pintando de maneira vívida e poderosa, aquelas imagens ficam enraizadas em um contexto histórico próprio e cheio de um profundo senso de liberdade no seu interior.

Sarro nasceu no ano de 1950. Brasil, o lugar onde nasceu e onde foi criado, continua com o seu desenvolvimento econômico instável, muitas favelas podem ser vistas lá. O mundo da arte no Brasil, porém, ostenta uma diversidade cultural e de conceitos ativos de arte moderna. Muitos dos artistas, inspirados pela arte moderna da Europa, se comprometem com a localização da arte moderna brasileira. A primeira Bienal de São Paulo que foi realizada em 1951, estabeleceu o Brasil como um centro onde os artistas da América do Sul construíram seu próprio sistema da arte moderna brasileira. No contexto cultural particular do Brasil, a produção das pinturas figurativas sem par de Sarro é, de fato, uma maneira pela qual o artista continuamente absorve, pondera e refresca as diversas tradições culturais.

Em primeiro lugar, os genes da criatividade de Sarro e a presença de imagem têm como base original a sua compreensão acumulada da iconografia tradicional cristã. A temática de suas pinturas está geralmente associada a pessoas comuns, de vida e identidade normais, ícones clássicos da iconografia cristã como a Santa Família com a Virgem e a Criança usualmente adotadas em grupos de figuras ordinárias, vestidas de maneira simples. Como Sarro, de preferência, insiste em um esquema severo e estável, dando aos sentimentos das pessoas, incluindo o prazer, a ira, a tristeza e a alegria caracterizados, um sentido solene de ritual, indicando também um tipo de mentalidade simbolizada. Consequentemente, os caracteres nas imagens sugerem algo como uma significância monumental do ser humano comum.

Em segundo lugar, a linguagem estrutural de Sarro se beneficia do enriquecimento por pinturas européias do modernismo, especificamente do estilo e modo cubista de Picasso, Braque e Léger. Sarro o integra e o utiliza como um elemento visual da sua própria linguagem. Ele cria uma combinação estreita da transformação de figuras, da justaposição de linhas, do forte contraste de cores e de planos diferentes, formando um singular estilo de pintura focado em planarização e composição; além disto, o torna um novo estilo de personalidade expressiva.

Em terceiro lugar, Sarro é influenciado também pelos artistas do Movimento Muralista do México dos anos de 1920 - 1950, incluindo Rivera, Frida e Siqueiros com sua ideologia e modo de expressão esquerdistas. A Grande Narrativa nunca é a sua maior preocupação, muito pelo contrário, ele contempla os trabalhadores e escolhe agricultores, vendedores, músicos e operários como seus caracteres. Desta maneira, ele retrata os membros robustos e a postura corporal dos trabalhadores em traços bastante simplistas e experientes. Diferente dos retratistas que minuciosamente retratam figuras de identidade estabelecida, Sarro contempla os tempos e a sociedade, procurando descobrir e integrar a humanidade universal, porém abstrata, de pessoas de todas as classes sociais do seu tempo. Do ponto de vista das atitudes variadas das pessoas comuns em relação a seus filhos, aos animais e à natureza, Sarro tenciona destacar um senso compassivo. Por meio de uma narrativa particularmente humanista, Sarro procura por todos os meios explorar as profundezas da auto-consciência, observar a evolução da lógica de cada um, melhorar a espiritualidade do schema de cada um; consequentemente, Sarro expande e evolve a força perceptiva dos caracteres sobre a base da vida e da existência humana.

Sarro está preocupado com o valor básico das pessoas, levando em conta a objetividade da consciência de sobrevivência. Ele é um pintor racional a ponto de habilitar a si próprio para transmitir um sentido de humanidade ao narrar o objeto das suas pinturas. O tom de cor junto com o contraste brusco de cores nas suas pinturas a óleo criam um cenário como em sonho. Seus caracteres, basicamente, são gerados a partir de sofisticados traços estruturais, estas linhas aparentemente fortes literalmente indicam a vigorosa liberdade interior que ele sente no processo de criação. Sarro parece ser dono de um par de olhos com o dom de identificar com facilidade e de enxergar através do corpo e a alma das pessoas. Pintando, ele quer revelar e justificar o tema trágico da vida, observando a força da sensualidade e da espiritualidade da vida trágica. Além disso, ele tem a capacidade de demonstrar a vitalidade, degeneração e desintegração originais da vida vibrante pela associação de situações com a distribuição de grupos de pessoas; desta maneira ele confere aos caracteres um senso compassivo de toque humano em cenas trágicas, destacando a concordância total do corpo humana e a alma com o mundo exterior.

O tema da morte tem sido por tempos um objeto maior na narrativa humanista de Sarro. Ele é um bom retratista de caracteres e de cenas socializadas e ritualizadas da morte, pintando de uma maneira pluralista com a inclusão daquelas mulheres e crianças comuns e também dos familiares normais. Nas pinturas de Sarro, o tempo poderia estar sujeito à compressão ou sobreposição. Especificamente, o corpo morto e o esqueleto poderiam representar uma espécie de superposição de diferentes encarnações, as pessoas de luto em torno do caixão poderiam ser enxergadas como três sombras da mesma pessoa, o rosto moreno em prantos e o semblante fúnebre do rosto negro poderiam simbolizar a evolução diacrônica da mesma imagem. Em termos de tempo, os caracteres pluralistas de Sarro permitem que a pluralidade dimensional seja sincronicamente justaposta e apresentada. Morte e vida, felicidade e mágoa, com certeza, são elementos essenciais das caracterizações de Sarro. Como os elementos respondem ao forte contraste entre luz e sombra, eles sistematicamente geram uma série de schema estruturado de estética. Do ponto de vista pós-moderno da pintura de Sarro, o modo de vida e o crescimento do homem encontram-se em perfeita harmonia com o universo; além disso, a pintura é um ponto de ligação para observar as relações interativas entre os homens como também entre o homem e o universo. O tema da morte, respeitado e perseguido por Sarro, é, de fato, uma espécie de estímulo para a paixão do homem pela vida e para a consciência da sobrevivência.

Sobre uma base de experiências visuais próprias, Sarro tenta criar uma forma visual mais pura no campo da pintura figurativa, uma vez que ele é um expert nesse campo. Nas suas pinturas, o espaço real do caráter é substituído do grande bloco de cor essencial e da decoração de luz no fundo, fazendo que a sua expressão figurativa se aproxime de um tipo de arte não descritiva, de uma maneira muito além do realismo. Tornando a luz mais clara ou escurecendo e enriquecendo a cor, Sarro é um mestre do controle de tons de cor e da organização de planos de uma maneira notável, fazendo que as obras de uma série correspondam entre si de modo lógico e coerente. Sarro se empenha em criar um schema universalizado próprio com uma característica textual identificável. Consequentemente, usando uma linguagem visual mais direta e simplista, o artista infere e manifesta a realidade da cultura contemporânea do Brasil num sentido visual e contexto global. Ele atribui muita importância à integridade das suas experiências subjetivas, acompanhando os tempos e estimulando o solilóquio, explorando continuamente a profundeza oculta da própria particular cultura geográfica e histórica. Portanto, com a sua própria linguagem e por meio de esforços constantes, Sarro desenvolveu um senso de crítica e valor de reflexão sobre as tendências no pensamento atual e, em certa medida, sobre a cultura popular. A extensão e a evolução do esquema artístico de Sarro desempenham um papel em simbolizando a pintura contemporânea brasileira como um exemplar visual, por assim dizer.

Gu Zhenqing
Curador independente e Critico de Arte

O Brasileiro Global

Pela versatilidade de Sarro e pelas suas atividades mundiais, o célebre critico de arte de Paris, André Parinaud, o chamou em 2002 de “o Brasileiro global”.

Na Noruega, Austrália e Alemanha, o Sarro já foi chamada por jornalistas de “Picasso Brasileiro”.

Veja Também

Veja também:
www.markusartes.com
www.arte-brasil.com
www.antik-leo.sk
www.sarro.sk

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